segunda-feira, janeiro 12, 2009

a avaliar pelas escalas de proporção com o crescimento humano, o cavalheiro infiltrado no armário, com os seus 18 anos felinos, terá cerca de 83 nossos. hoje, ao fim da tarde, foi o grande animador da atmosfera sonora do veterinário: que engraçado! o gato desta menina faz barulho de lince, como o nosso fazia! um casal, outrora também detentor de um siamês vetusto, mostrava-se bastante compreensivo com a fúria do bicho e partilhava momentos national geographic domiciliários comigo, impedindo-me de ter de me rir sozinha, face ao olhar aterrado dos donos de cães joviais e gatinhos ternurentos. não sei bem se é de lince o barulho. de gato, não será, de certeza. nada de grave, questões glandulares a sanar e mimos. já aqui me referi ao sentimento de pasmo que me assalta perante a metamorfose absoluta do gato (do acto) sob a vibração de medo. a energia que lhe parece regenerar as células para bufar, rosnar e flagelar a luva quase-de-falcão do veterinário, com as unhas de fora. sob estímulos afectivos, não rejuvenesce, estica-se, lânguido, sem brincar, como fazia há anos. de manhã, porém, mesmo antes de qualquer palavra ou afago, ronrona, sem descompor a rodilha corporal em que adormeceu, ronrona instantaneamente. a luz e a percepção dos donos em trânsito é-lhe um estímulo diferente de qualquer outro. não sei porque caio na banalidade deste relato, agora que me ouço, mas arriscando uma hipótese, creio que terá que ver com a minha necessidade de achincalhar o medo, cada vez que ele se manifesta sem medo para tingir qualquer situação. à boleia do almada, termino mais um post com a etiqueta que já conhecem:

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sexta-feira, novembro 21, 2008

O medo provém dum certo cultivo da imaginação, da consideração extrema pela vida, que é coisa distinta do amor por ela; considera-se aquilo que se teme perder, mas amar é sempre um estado de audácia, de êxtase, situação de jogador que lança os seus dados e arrisca.

(negrito meu)

Agustina Bessa-Luís in A Sibila

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quinta-feira, novembro 13, 2008

da partilha

escreve um aforismo no wc. generaliza a canivete, atrás da porta. desenha isso na areia e aponta a quem passear à beira-mar (deixa o indicador permanecer com os grãos na ponta). dependura essa verdade com molas, deixa-a a secar na janela que for virada para a rua.

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sexta-feira, setembro 26, 2008

triar. tirar. tear.

a primeira vez foi quando tive de exumar um texto da biblioteca nacional. avaliações de semestre. lembro-me de até então nunca - embora achasse que sim, por já ter colocado a questão em termos teóricos - me ter confrontado verdadeiramente com o acto de trazer à luz um texto inédito de alguém que já houvesse partido. vírgulas, abreviaturas, caprichos gráficos: tudo me causou muito incómodo, picos nas entranhas, por estar a manipular um pedaço de alguém que já não tinha voz.
há noites, mesmo sem qualquer incumbência editorial, a situação voltou a visitar o meu íntimo. tive de organizar e podar material de uma amiga de quem já não posso ouvir a voz. desta vez, também havia manuscritos e dactiloscritos, só que a operação acarretou os clássicos sacos do lixo grandes e pretos, papel amarrotado ou rasgad. assim são as limpezas. procurei mentalmente apontamentos académicos à procura da técnica para rasgar uma folha com caligrafia amiga, instruções de como se deitavam tais coisas ao lixo, a edição pela omissão. não constava de aula alguma em que tivesse estado. adiava o arremesso para o grande saco preto.
vai ser reciclado! mas vai ser reciclado! ralhou-me uma voz qualquer cá por dentro. e o saco do lixo preto deixou de me atemorizar, deixou de ser um buraco negro de boca aberta. da reciclagem adviria uma forma regenerada. nova. finda a tarefa, o saco do lixo preto esticou-se e contraiu-se à entrada do ecoponto com os estalidos próprios do plástico; e assim o íntimo, em silêncio, todavia. coube tudo. o espaço anímico da limpeza ficou mais leve. ainda faltam várias coisas, mas o saco preto pode ser reutilizado.
o saco não é preto, nem sequer é de plástico: é de húmus.


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sábado, junho 28, 2008

angústia, angústia... quão pirosa és

és realmente mal-vinda. muda de roupa. olha que ficas ridícula...
desacreditada pelo coração entediado que falava, ao ouvir isto, a angústia corou, entrou no carro e desastacionou o mais rápido que soube.

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quinta-feira, maio 29, 2008

o assalto & a mente armada

o assalto vangloriava-se de ser capaz de subjugar a mente. por completo. sem grandes fundamentações, de modo intuitivo, condizente com a sua própria fibra emocional, divertia-se a atravessar paredes mentais para semear estados de alteração súbitos. a mente sabia que a implantação do seu método de defesa seria não-imediata, de modo organizado, condizente com a sua própria fibra racional. levantava-se todos os dias cedo para se exercitar. saía sem saco, porque não gostava do espaço fechado e artificial do ginásio. corre o dito que costumasva vestir umas claças de fato de treino um pouco pirosoas e que passava pela rua em grande alheamento a olhares do redor. aguçava ameias internas e estudava todas as modalidades de arremesso do assalto para as desmontar. o assalto ria-se, muitas vezes, de forma cavernosa. a certa altura, começando a tomar consciência da dificuldade que sentia em atravessar paredes mentais, apercebendo-se de que em certas circunstâncias já nem sequer o conseguia, tentasse o que tentasse, entediou-se e consumiu-se no seu próprio fracasso.

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sexta-feira, março 07, 2008

de botas vermelhas, com um rebordo de algodão infantil a circundar a zona logo acima do tornozelo
a ideia entrava do metro in extremis, por uma nesga. ninguém a via a não ser ele. e mesmo ele, para explicar com propriedade, não a chegava a ver, só a ouvia. mesmo assim sabia desde o princípio que a ideia tinha umas botas vermelhas, de sola rasa, com um rebordo infantil de algodão a circundar a zona acima do tornozelo. não era a primeira vez que a ideia escolhia o mesmo metro para entrar. ele sabia, por exemplo, que a ideia nunca se descalçava e se fazia sentir com barulho de botas. vermelhas e tudo o mais. nesse dia, a ideia sentou-se ao lado dele. nem sempre conseguia uma proximação tão justaposta, mas o assento estava vago, com o tampo dobrado para cima; ele sabia que a ideia tinha entrado e que era ela que fazia aquele barulho irritante a bater com a borracha das botas no chão. uma ideia não pode ter tiques nervosos, naturalmente, mas aquela era mesmo assim, não parava de bater com os pés no chão. sentada do lado da janela, embaciava o vidro com uma emissão baforenta, não queria que o exterior, nos momentos em que o metro passava pela superfície competisse em pregnância visual com ela, havia que toldar a fuga da atenção, custasse o que custasse. ele não via o embaciado, mas sabia que a ideia tentava tornar o vidro opaco, como as criancinhas que fazem telas de vidro embaciado com a boca para recortar com desenhos e escritos a dedo. quando ele saiu, a ideia seguiu-o e dispunha-se a continuar o paralelismo até ao café. não fosse ele lembrar-se de que a devia avisar que tinha o cordão da bota direita desapertado, a ideia não desistiria de o acompanhar. quando ele a avisou, a ideia teve de parar com o barulho das botas, abaixar-se e apertá-las. ele não via a ideia, repita-se, mas sabia tudo - o cordão, o ser no pé direito e tudo o resto. apercebendo-se de que a ideia parava, para se compor, não se conseguiu controlar e largou uma gargalhada em plena rua. ao fechar a boca, fechando o riso, ele, embora não visse a ideia, tinha a certeza: a ideia, furiosa, humilhada, com as maçãs do rosto em justa combinação com os pezinhos de botas, desaparecera.

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sábado, dezembro 22, 2007

no início

embora entre risos, a afirmação teve a geometria e a precisão da sintaxe ou de uma declinação. disse a senhora no seu português germanicado único:

- no início temos de ser humildes, até porque há erros com um certo charrrme...

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terça-feira, dezembro 04, 2007

S.
curioso que a digitalização da lombada saísse com este ar fantasmagórico, com um apagamento no lado direito! podia repetir a operação, mas achei que o resultado servia perfeitamente o propósito expressivo da questão que me ocupava enquanto levantava a tampa do scanner. o problema tinha realmente a ver com fantasmagoria e nevoeiro!lembro-me de que há uns anos, depois de ter lido A Costa dos Murmúrios, da Lídia Jorge, se reforçou em mim com mais clareza ainda a fragilidade do senhor facto, da fidelidade narrativa do real, da História. já me debatia com a questão, começando a padecer de bloqueios de opinião pela provocação da dúvida e da incerteza que me picava a mente, baixinho, por dentro. sabes se é assim? sabes se foi assim? e se contassem doutra forma? não estavam lá dos dois lados, e se contassem doutra forma?
tudo isto, não porque queira explorar a questão colonial nos termos em que é abordada por Lídia Jorge e comparar fontes, sendo uma delas o livro à esquerda, mas apenas porque o bacyllus timoratus do não-sabes-em-bom-rigor-como-foi-a-coisa tem atacado e tem obrigado a escavar com mais profundidade o senhor S.
* claro que esta leitura só vai agravar o estado das coisas, obrigando-me a ler mais e muito mais. é evidente.

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sábado, novembro 10, 2007

urgente

procura-se manual técnico avançado de manutenção de ar claramente condicionado.

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quinta-feira, setembro 06, 2007



bacyllus timoratus

os 17 anos (ou 18? andava na terceira ou na quarta classe quando a minha irmã o trouxe? já ninguém sabe ao certo...) do meu gato começaram a cobrar algumas facturas ao bicho, desde que o calor se fez sentir mais. não há doença no carimbo, são os rins e o coração de um gatinho com idade. com este calor, menina... mas ele arrebita. julgo que sim. há dois anos aconteceu o mesmo. para já, dorme numa almofada de que se apropriou, abaixo do armário fotografado. entristece-me, não me surpreende que lhe custe a suportar o calor.
se aqui vim foi pelo que se passou no veterinário, reproduzível em qualqer cenário: com ou sem pêlo. quem tivesse visto o gato prostrado, de olhar mortiço, com o focinho rombo, a cambalear quando se tentava levantar, sentiria o contraste à entrada para a consulta: recuperou o olhar atento, o porte de felino vigoroso, pronto a atacar. o medo é um motor que não é do nosso tamanho, é uma potência elevada a nós mais qualquer coisa, ao mais infinito da nossa encenação interna. neste caso, demito-me de digressões sobre a imaginação de um gato, sendo, no entanto, óbvio que estava tomado pelo medo daquele espaço vestido de bata verde e de húmus de inox desinfectado. apesar da falta de forças, não parou de rosnar - trata-se de um gato, mas este rosna, é o verbo mais fiel - animado pelo arrepio de ali estar. o medo é um motor. naquele instante, em que a veterinária o auscultava, sob rosnares e tentativas de arranhadela, com uma luva quase de falcão, lembrei-me, por oposição, de contrastes de estados movidos pelo amor, que oxigenava outras coragens e operava outras metamorfoses. cheguei a não ouvir completamente como dosear a medicação a ser feita. porque o medo é um motor. de repente, não me conformava com o facto de que o medo pudesse ser um motor. já o sabia. quem não sabe? quem nunca lhe fez reverência? mas aquele olhar felino espelhava a vibração do temor em bruto, de modo visceral, era um recorte faiscante de agressividade no focinho. procurei dentro de mim momentos em que o medo tivesse sido um motor, enquanto continuava a olhar o ar assustado, mas pujante do animal. o medo é um motor. não queria. não gostava de encontrar momentos de metamorfose por causa do medo. não queria. não quero que o medo seja um motor. desculpe, o que dizia sobre este comprimido amarelo? toma meio por dia? posso misturar com comida?
exacto, vou escrever aqui. não deixe esta carteirinha acabar, venha cá buscar outra durante a próxima semana. vai ver que logo à noite ele já arrebitou. obrigada por avisar. chegam aqui donos com autênticas feras e não dizem nada, andam os bichos por aqui aos pinotes...
a luva de falcão era bonita. a veterinária foi arrumá-la a um canto e fechou a porta.

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sexta-feira, julho 06, 2007

o coração isto, o coração aquilo, mas no estômago é que são elas, seja qual for a matéria...

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