de botas vermelhas, com um rebordo de algodão infantil a circundar a zona logo acima do tornozelo
a ideia entrava do metro in extremis, por uma nesga. ninguém a via a não ser ele. e mesmo ele, para explicar com propriedade, não a chegava a ver, só a ouvia. mesmo assim sabia desde o princípio que a ideia tinha umas botas vermelhas, de sola rasa, com um rebordo infantil de algodão a circundar a zona acima do tornozelo. não era a primeira vez que a ideia escolhia o mesmo metro para entrar. ele sabia, por exemplo, que a ideia nunca se descalçava e se fazia sentir com barulho de botas. vermelhas e tudo o mais. nesse dia, a ideia sentou-se ao lado dele. nem sempre conseguia uma proximação tão justaposta, mas o assento estava vago, com o tampo dobrado para cima; ele sabia que a ideia tinha entrado e que era ela que fazia aquele barulho irritante a bater com a borracha das botas no chão. uma ideia não pode ter tiques nervosos, naturalmente, mas aquela era mesmo assim, não parava de bater com os pés no chão. sentada do lado da janela, embaciava o vidro com uma emissão baforenta, não queria que o exterior, nos momentos em que o metro passava pela superfície competisse em pregnância visual com ela, havia que toldar a fuga da atenção, custasse o que custasse. ele não via o embaciado, mas sabia que a ideia tentava tornar o vidro opaco, como as criancinhas que fazem telas de vidro embaciado com a boca para recortar com desenhos e escritos a dedo. quando ele saiu, a ideia seguiu-o e dispunha-se a continuar o paralelismo até ao café. não fosse ele lembrar-se de que a devia avisar que tinha o cordão da bota direita desapertado, a ideia não desistiria de o acompanhar. quando ele a avisou, a ideia teve de parar com o barulho das botas, abaixar-se e apertá-las. ele não via a ideia, repita-se, mas sabia tudo - o cordão, o ser no pé direito e tudo o resto. apercebendo-se de que a ideia parava, para se compor, não se conseguiu controlar e largou uma gargalhada em plena rua. ao fechar a boca, fechando o riso, ele, embora não visse a ideia, tinha a certeza: a ideia, furiosa, humilhada, com as maçãs do rosto em justa combinação com os pezinhos de botas, desaparecera.
Etiquetas: o medo "usa ceroulas de malha"
2 Comments:
agrada-me a tua ideia da ideia usar botas vermelhas. para meu contentamento preferia, em particular, que fossem galochas. talvez por uma qualquer memória de infância daquelas raparigas mais lestas que fugiam da minha raiva pela lama dos montes. é mesmo assim que gostava de as encontrar vestidas, às minhas ideias, como raparigas desaforadas desta terra, que por nada se deixam apanhar. queria acreditar que teria hoje sabedoria bastante para as apanhar com a simples, benevolente atenção, mas nada é mais certo...
se fossem galochas, lá se ia a imagem do cordão desapertado. mas registo a dica cénica. esta ideia ou conjunto de ideias em que pensava ao postar, melhor seria que não apanhassem o passageiro. ele, pelo contrário, queria ver a sua atenção livre da atenção da ideia;)
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