sexta-feira, setembro 26, 2008

triar. tirar. tear.

a primeira vez foi quando tive de exumar um texto da biblioteca nacional. avaliações de semestre. lembro-me de até então nunca - embora achasse que sim, por já ter colocado a questão em termos teóricos - me ter confrontado verdadeiramente com o acto de trazer à luz um texto inédito de alguém que já houvesse partido. vírgulas, abreviaturas, caprichos gráficos: tudo me causou muito incómodo, picos nas entranhas, por estar a manipular um pedaço de alguém que já não tinha voz.
há noites, mesmo sem qualquer incumbência editorial, a situação voltou a visitar o meu íntimo. tive de organizar e podar material de uma amiga de quem já não posso ouvir a voz. desta vez, também havia manuscritos e dactiloscritos, só que a operação acarretou os clássicos sacos do lixo grandes e pretos, papel amarrotado ou rasgad. assim são as limpezas. procurei mentalmente apontamentos académicos à procura da técnica para rasgar uma folha com caligrafia amiga, instruções de como se deitavam tais coisas ao lixo, a edição pela omissão. não constava de aula alguma em que tivesse estado. adiava o arremesso para o grande saco preto.
vai ser reciclado! mas vai ser reciclado! ralhou-me uma voz qualquer cá por dentro. e o saco do lixo preto deixou de me atemorizar, deixou de ser um buraco negro de boca aberta. da reciclagem adviria uma forma regenerada. nova. finda a tarefa, o saco do lixo preto esticou-se e contraiu-se à entrada do ecoponto com os estalidos próprios do plástico; e assim o íntimo, em silêncio, todavia. coube tudo. o espaço anímico da limpeza ficou mais leve. ainda faltam várias coisas, mas o saco preto pode ser reutilizado.
o saco não é preto, nem sequer é de plástico: é de húmus.


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5 Comments:

Blogger icendul said...

além disso, o ecoponto é azul, cor de céu.

26 setembro, 2008 01:03  
Anonymous Anónimo said...

tear...?

26 setembro, 2008 19:13  
Blogger icendul said...

tear, sim. desembaraçamo-nos de algo, triando, tirando, mas nunca para cair no vazio, tece-se uma nova forma.
(e dava jeito foneticamente:P)

26 setembro, 2008 20:49  
Anonymous Anónimo said...

Crime, digo eu. Admitindo embora questões práticas de espaço ou falta dele, amputar um espólio é sempre coisa potencialmente criminosa. Tudo, "mesmo as contas do alfaiate", possui o seu interesse.

27 setembro, 2008 11:06  
Blogger icendul said...

para sentenciar a operação como crime, seria preciso ter assistido in loco à matéria de facto.nem tudo se explica num post.nem todos os corações vibram pelo apego à conta do alfaiate e quejandas expostas na rotina de uma casa, que já por si evoca quem não está: alguns podem escurecer ou parar.

27 setembro, 2008 20:48  

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