domingo, março 30, 2008
escrever o corpo
enquanto lia a narrativa os amantes, de jorge de sena, pensava, em vez repetida, como é difícil deitar corpos na página para os tocar, despir e fundir. progredia linha abaixo no texto, apreciava o eco predominantemente cerebral, donde vem um nó inteligente, mas não necessariamente erótico, ou com matizes de erotismo. isto não é depreciar o texto, é apenas dizer que há matizes aflorados ou tentados que não estão absolutamente lá. em termos gerais, e não só neste texto, o equilíbrio entre o pulsional animal e a subtileza do frémito no íntimo é difícil de interseccionar. por vezes, parece haver uma opção por apenas um dos níveis. há qualquer coisa que se trunca. para o amor vestido há o famigerado rídiculo de que todos enfermamos e onde nos acabamos por rever. e o amor pelo corpo, como se escreve?
quinta-feira, março 27, 2008
-Que estás para aí a riscar, pequeno?
O menino Jesus voltou-se (quando nos fazem perguntas destas, a gente está sempre de costas) [...]
O menino Jesus voltou-se (quando nos fazem perguntas destas, a gente está sempre de costas) [...]
Jorge de Sena As antigas e novas andanças do demónio
terça-feira, março 25, 2008
sino dobra seio
os repiques do sino na páscoa, que desciam a rua até à janela do meu quarto, dobraram como a finados. quando a finados, os sinos dobram como a chamada para a missa. uma promiscuidade sonora que irrita alguns fiéis das redondezas o homem do sinos não tem arte nenhuma! ouço eu, mais do que uma vez. divirto-me, por vezes, a imaginar um quasímodo a invadir a igreja da minha área para explicar ao encarregado o critério para cada ocasião. formação de repique de sino, com horário afixado, ao lado das actividades paroquiais. mas tudo isto apenas porque acabo por me rir com a irritação alheia. o sinal de sentido é-me íntimo, sem precisar de adaptação melódica. embora a aprecie e até preferisse ouvir variantes, não crucifico o sacristão de badalo monocórdico. para ele, as diferentes actividades são uma hora de ponta nos seus dias, chego a compreender que uniformize o gesto. enquanto pensava nisto, lembrei-me da professora a enrugar a camisa, até o tecido formar prega e adquirir uma certa forma cónica, como acontecia na toga lassa dos romanos, forma de sino, ou de seio, vistos na lateral; explicava-nos que em latim a palavra é a mesma, tanto para dobra, como para seio: sinus, us.
segunda-feira, março 24, 2008
sexta-feira, março 21, 2008
dia mundial da poesia
o vento levou-me à esplanada de mesas verdes que fica debaixo das escadas que dão acesso à ponte. a beira do muro que contorna o rio acabava por picar as pernas, nem lia, nem escrevia. do outro lado da margem, os quadrados de relva, mais apartados, antes da confusão de bares do cais de gaia. onde me lembro de ter apanhado sol e lido parte da yourcenar ao negro, quando há uns anos o cais de gaia ainda não era cais de gaia. (porque é que me lembro sempre disso quando olha para lá, do lado do porto?) o jornal ainda voou em direcção às pernas dos espanhóis da mesa ao lado; recolhi-o de vez e decidi-me a responder a um desafio escrito a quatro, não duas - é só uma que escreve - mãos já com três anos de latência. caprichos de inspiração. mais o clássico temor do projecto conjunto. seja o que for. tudo isto foi uma introdução para o que se segue e se passou na mesa do lado esquerdo. um homem a bigode e casaco de fazenda, acompanhado de uma superbock, fita as manobras de uma pomba que tenta desentalar uma bolinha de pão de entre os intervalos do chão cimentado. cai-me a concentração ao chão, com o barulho do pássaro, vejo o homem a agachar-se, a pomba bem tenta extrair a sua presa de cereal, mas não tem sucesso. vai apanhá-la, vai apanhá-la, pensava eu, lembrando-me do que fazia o meu primo na praça de caminha, entre os pastéis e os gelados de verão. a pomba esvoaçou para fora de cena. o homem continuou agachado. aproximou-se do pedaço de pão. e comeu-o. ainda lhe pude ver o perfil a mastigar quando voltou para a mesa.
terça-feira, março 18, 2008
os vizinhos invadem-me as paredes de casa com bases pop e rock em canto gregoriano. o projecto terá o seu quid, admito: ouvir Mettalica nestes moldes, por exemplo, tem alguma piada, mas como sinto uma das minhas vértebras puristas ocultas a saltar, vou ter de ligar umas colunas ao pc e virá-las para a parede com genuinidade!
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segunda-feira, março 17, 2008
as aspas abriam aqui
vamos supor que isto é uma citação do livro que não li, do parágrafo pregnante que não procurei e me supreendeu, da voz que me fez companhia de perspectiva sem eu ter pedido.
vamos supor que isto é uma citação do livro que não li, do parágrafo pregnante que não procurei e me supreendeu, da voz que me fez companhia de perspectiva sem eu ter pedido.
e fechavam aqui
ou, então, ficaria tudo escrito em itálico
quinta-feira, março 13, 2008
mudei a lâmpada do candeeiro da secretária apenas há dois dias. hoje de tarde, quando o quadrado de sol já mingava muito para lá das minhas folhas e se escoava pela janela, rodei o botão para iluminar o trabalho e recebi um estouro, em vez de luz. a lâmpada fundiu-se. descaradamente. com apenas umas horas de expediente. o impacto do estrondo obrigou-me a acalmar durante uns segundos, para fintar a surpresa. durante esse segmento de tempo, por muitas razões, reflecti no efeito do falso argumento: roda-se e encasquilha com uma aparente e súbita perfeição, mas ao invés de iluminar uma questão, não tarda a introduzir-lhe ruído.
segunda-feira, março 10, 2008
sexta-feira, março 07, 2008
de botas vermelhas, com um rebordo de algodão infantil a circundar a zona logo acima do tornozelo
a ideia entrava do metro in extremis, por uma nesga. ninguém a via a não ser ele. e mesmo ele, para explicar com propriedade, não a chegava a ver, só a ouvia. mesmo assim sabia desde o princípio que a ideia tinha umas botas vermelhas, de sola rasa, com um rebordo infantil de algodão a circundar a zona acima do tornozelo. não era a primeira vez que a ideia escolhia o mesmo metro para entrar. ele sabia, por exemplo, que a ideia nunca se descalçava e se fazia sentir com barulho de botas. vermelhas e tudo o mais. nesse dia, a ideia sentou-se ao lado dele. nem sempre conseguia uma proximação tão justaposta, mas o assento estava vago, com o tampo dobrado para cima; ele sabia que a ideia tinha entrado e que era ela que fazia aquele barulho irritante a bater com a borracha das botas no chão. uma ideia não pode ter tiques nervosos, naturalmente, mas aquela era mesmo assim, não parava de bater com os pés no chão. sentada do lado da janela, embaciava o vidro com uma emissão baforenta, não queria que o exterior, nos momentos em que o metro passava pela superfície competisse em pregnância visual com ela, havia que toldar a fuga da atenção, custasse o que custasse. ele não via o embaciado, mas sabia que a ideia tentava tornar o vidro opaco, como as criancinhas que fazem telas de vidro embaciado com a boca para recortar com desenhos e escritos a dedo. quando ele saiu, a ideia seguiu-o e dispunha-se a continuar o paralelismo até ao café. não fosse ele lembrar-se de que a devia avisar que tinha o cordão da bota direita desapertado, a ideia não desistiria de o acompanhar. quando ele a avisou, a ideia teve de parar com o barulho das botas, abaixar-se e apertá-las. ele não via a ideia, repita-se, mas sabia tudo - o cordão, o ser no pé direito e tudo o resto. apercebendo-se de que a ideia parava, para se compor, não se conseguiu controlar e largou uma gargalhada em plena rua. ao fechar a boca, fechando o riso, ele, embora não visse a ideia, tinha a certeza: a ideia, furiosa, humilhada, com as maçãs do rosto em justa combinação com os pezinhos de botas, desaparecera.
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segunda-feira, março 03, 2008
um cisne de pão
Marjane Strapi + Vincent Paronnaud
O que as pessoas dizem é: "Não fazíamos ideia de que era assim". Isto quer dizer apenas uma coisa: "Não sabíamos que havia seres humanos que viviam lá". Porque hoje, no Irão, estamos reduzidos a noções abstractas. Falam de nós como terceiro-mundistas, médio-orientais, terroristas, fanáticos. As pessoas esquecem-se que por trás disto há pessoas, que têm pais, que têm filhos, que têm amores, que têm esperança. (...) Se há uma mensagem neste filme é, justamente, retornar tudo a um nível individual, humano.
Marjane S., em entrevista ao ípsilon
22 de Fevereiro de 2008
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Cesária Évora Saiona D' Vinte Ano rapinar
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