sábado, junho 30, 2007


O Tartufo
Molière

quando se entrava na sala, num trajecto de acesso quase doméstico a uma espécie de cave, sentia-se imediatamente cheiro a velas, clássico de igreja ou sacristia, a cera consumida. suspeitei de manobras de criação de atmosfera gótica, o que me parecia desenquadrado, mas não. quando entrei, as velas contornavam de modo simples as três arestas do palco; sendo o tópico da beatice fundamentalista e da encenada transversal a toda a peça, o odor tornava-se um verdadeiro pormenor cénico, muito mais do que a própria presença corpórea e luminosa dos cilindros de cera, que eram sóbrios e discretos. as cadeiras inclinavam-se e dispunham-se num ângulo que colocava o espectador quase dentro do palco, numa espécie de imersão no quadrado de conflito e interacção das personagens. fiquei com uma sensação estranha, partilhada outros: percebia-se que estavam bons actores em palco, mas, muito provavelmente devido às orientações cénicas, a formatação vocal e rítimica levantava algumas questões... o texto tinha uma solidez conceptual e rítmica que ficou algo enfraquecida pelo acelerar constante e invariável da enunciação. depois, a formatação da tensão e o conflito: nos momentos fulcrais de discussão, a atmosfera, ao invés de se tornar psicologicamente perturbante, tornava-se apenas acusticamente cansativa. entendo, contudo, a dificuldade de regular um ambiente de tensões com a exacta acuidade colérica - é complexo não se cair nem em simples gritaria vocal, nem em meras enunciações indispostas, muito planas, como vemos nas telenovelas. palmas para Palminha e para Carlos Paulo, os meus eleitos entre o elenco. Carlos Paulo, o senhor Tartufo, tinha uma plástica corporal lynchiana: olhar mefistofélico, malares e maçãs escavadas - vi-os muito bem num recorte de perfil bem perto, quando este se aproximou do meu assento no último acto - adequadas quer à severidade e austeridade devotas, quer à falsidade manipuladora da sua presença, era assim que a riqueza do seu corpo em palco se impunha.
e mais não escrevo. vale a pena ler ou ver a peça.

quarta-feira, junho 27, 2007

ginásio
é espontânea, sendo ou não inconveninte, a memória de uma situação, das cores que a matizaram, dos odores que a impregnaram, das palavras que se disseram, dos espaços que deram palco a um qualquer momento. mas relembrar as sensações do momento, conseguir evocar o sabor espiritual de um contexto é difícil. atravessar 10 anos, por exemplo, para resgatar uma situação de alegria para o presente pensado, em que se está a respirar, tentando que o espírito vibre na mesma frequência da altura evocada, poderia ajudar a inverter uma frequência mais lúgubre. um romântico que lesse isto desataria a poemar, alegando que isso ainda seria pior, porque por comparação a ciclos de euforia, um presente menos bom teria um travo ainda mais amargo, seria ainda mais notório o contraste.
estou cansada de românticos, ou de certo tipo de romantismos, pelo menos.
estou a treinar captura de sensações e vou continuar a ir ao ginásio.

domingo, junho 24, 2007


jay-jay johanson - even in the darkest hour

>rapinar

saudades deste álbum. descansar, depois de mais um ritual viking joanino por margens do Douro. foi o primeiro ano em que vi capacetes anti-tradição martélica. apoiado!


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quinta-feira, junho 21, 2007

calçada
encosta-se sempre com uma disciplina de expediente ao mesmo lampião. olha de lado, sem encarar, e baixa a cara, para a voltar a erguer de encontro ao edifício da frente. terá crianças para alimentar? tenho um amigo que me diz ser intuível quando são reféns da situação ou quando nem tanto. eu não consigo, nem sequer tento apurar nada. o certo é que aquela presença não me deixa indiferente. não a encaro fixamente, por achar que a vou constranger, mas é inevitável perceber-lhe alguns movimentos rápidos, ao passar. há uns dias, foi precisamente por baixar os olhos que detectei na sombra do passeio que virou a cabeça na minha direcção, quando já ia de costas. questionei-me sobre o que pensou, se realmente olhou para mim, não para mim, concreta e individualmente concebida, mas para a imagem de outra mulher que desce o seu dia de trabalho por aquela rua, rumo a casa. quem por ali passa, ao fim da tarde, encontra-a com uma regularidade de porte, local e hora geometricamente conjugados, como a precisão dos cubos brancos de calçada portuguesa que vai sendo calcetada pelos passos dos que voltam do trabalho ou da escola. é possível que por essa hora ela tenha apenas acabado de chegar.

quarta-feira, junho 20, 2007

dúvida e dádiva: pontos de vida.

terça-feira, junho 19, 2007

hoje de manhã, a chuva ultrapassou os contornos ósseos até me molhar o espírito. lembrei-me das passagens do Livro do Desassossego, sem sentir, contudo, nenhum negrume: a memória recortou-lhes a melancolia e lavou-as com a pura contemplação das gotas.

segunda-feira, junho 18, 2007

mental
ment'ele
menti-la
mentol
mentu...
o nível último nunca faz sentido. aquele quid ninguém o explica. vou oferecer um cafezinho ao pensamento para ver se ele me dá tréguas e esperar que a intuição me convide a mim para jantar.

sexta-feira, junho 15, 2007



composição de Shostakovsky (St. Petersburgo, 1906 - Moscovo 1975)

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quarta-feira, junho 13, 2007

já percebi que eu e o vizinho da frente escolhemos a mesma hora para fumar um cigarro à janela. do meu lado, é a da cozinha. a essa altura do dia já estou sem lentes e nesse momento concreto não admito presenças de corpos de óculos na cara. percebo apenas uma presença que está de manga caviada, mas não lhe conheço o rosto. sei que há ali uma combustão e a singularidade do rosto do homem mistura-se com a percepção que tenho do fumo. são uns cinco minutos de recolhimento, em que uma definição corporal humana nítida seria muito intrusiva. na rua, não o identifico. teriam os impressionistas buscado aquela inspiração de enevoado colorido nalgum grau de miopia? separa-nos a rua, mas o lampião que ilumina aquela fatia de passeio é comum. o topo da lâmpada, com uma cobertura metálica, é a plataforma de eleição dos pombos para os seus rituais de acasalamento.

segunda-feira, junho 11, 2007

O Lugar em Questão
Paul klee, 1922

sábado, junho 09, 2007

teometria
enquanto lavava a cabeça, a ideia dissolveu-se no amaciador e escorregou-me pelo cabelo. pude sentir muito bem o espaço que a nuca ocupava no espaço e a textura do couro cabeludo na polpa dos dedos, como se formasse um segmento com as duas mãos para medir qualquer coisa. se Deus fosse linearmente apreensível, seria assim, delimitado e delimitável, uma nuca com cabelo, da qual se assegura a manutenção higiénica, sustentável por duas mãos. entender tudo era uma pena, era higiene e manutenção. vamos lá achar piada à dimensão ilimitada da dúvida e aceitar a pequenez da mente.
e como está calor, seca tudo ao natural. vou agora ligar o secador e acordar os vizinhos...

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quinta-feira, junho 07, 2007

Yasujiro Ozu
1903-1963 - Japão


Vi há dias o meu primeiro Ozu, e o último dele, Samma no aji (O gosto do sake). Esperava uma cadência oriental, em que tudo é ritmado com deslize particular dos momentos, que muitos insistem em classificar como lentidão, mas que do meu ponto de vista não é rigoroso: entendo, em parte, a que se referem, mas quando a focalização é quase exclusivamente psicológica, o ritmo, dentro dessa categoria, é o normal. Neste filme, essa singularidade da cadência não correspondeu à minha expectativa, sem que fosse uma trama de acção. Fiquei a pensar na impressão. Vou procurar mais filmes deste senhor, para apurar qual das sensações se confirma: a mais recorrente ou esta nova, ainda à procura de termo ou descrição mais justa.

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terça-feira, junho 05, 2007



apetite de arraial. apetite de arraial. apetite de arraial. apetite de arraial. apetite de arraial. apetite de arraial. apetite de arraial. apetite de arraial. apetite de arraial. apetite de arraial.

Ó, desculpe... não se importa de me justificar a sua alegria?
a alegria-porque-sim tornou-se numa espécie de sintoma de excepcionalidade, causal e directamente dependente de uma ocorrência extraordinária. há quem chegue a escrutinar simples saudações ou sorrisos, com esgares inquisitoriais, chegando a atirar está de bem com a vida! de onde veio? ou o clássico piroso vai ter com quem? o mais cómico é que a pergunta pode começar por explodir no nosso próprio íntimo, logo pela manhã: de onde me vem tanta vontade de atravessar o dia? triste é a nossa bitola ser tão estreita, tão escura.

sábado, junho 02, 2007

reflexão

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