dois €’s
foi o que paguei pelo primeiro cone invertido do ano.
castanhas assadas na rua. apenas 12 pelos idos 400$00… mas é inumano domar as narinas contra a nuvem hipnótica que impregna o metro do campo grande. há anos que a compra – seja em que paragem for - se repete nos meus fins de tarde outoniços. esta semana pensei a sério no facto de ser uma folha de lista telefónica a servir de suporte à dúzia tão ansiada: apertar o número da senhora e do senhor tal na mão, terem as castanhas, que se ingerem, contacto com uma página dedicada a cabeleireiros, tudo finalizado numa bola de papel amarrotada no cesto mais próximo. já dentro do metro, o cone ia a meio. o cheiro deu direito a alguns olhares de esguelha. ia um cão bebé ao colo do rapaz que estava ao meu lado, tentou dar uma dentada no cone, o que lhe valeu uma porta-chavadas do dono e um sorriso meu.
foi o que paguei pelo Bergman.
Tystnaden (O Silêncio)
Estreia Mundial: Estocolmo, 1963 >> Estreia em Portugal: 1975
explica J. Bénard da Costa na síntese escrita: Se o filme não foi pura e simplesmente proibido (como aconteceu em Portugal) foi mutilado por quase todas as censuras (…) Muito mudou o mundo nestes quarenta anos… Quem virá hoje ver o filme para ver cenas chocantes ou fique chocado com elas?
e realmente, do despudor corporal não me adveio nenhum choque; por um lado, porque não o considero a tónica do filme, por outro, pelo facto de a expressão corporal das cenas que se quiseram mais impróprias me parecer tímida face às cenas que hoje podem merecer carimbos da polémica indecência.
perturbou-me a suspensão constante da resolução da angústia.
em que momentos do filme respirei mais à vontade? no feixe de luz que irrompe na paisagem vista da carruagem da cena introdutória? nos pés descalços de Anna pelo quarto?
único em cena era o olhar e o caminhar de Johan. foi à boleia da desorientação do próprio menino que atravessei o filme. Deus só por ausência existe e são vãs as tentativas de Ester comunicar com os outros (o miúdo, a irmã, o criado, corpos e vozes que sempre se lhe recusam ou não a compreendem) como são vãs as tentativas de Anna. No quarto, esta diz ao desconhecido que escolheu para companheiro de noite: É tão bom que não percebas a minha língua. [J. Bénard da Costa]
fecha o filme uma trilogia da qual não pude acompanhar senão esta última estação, o que não condiciona pouco a minha percepção.
independentemente da questão sequencial, analisando isoladamente o filme, ou nem sequer pensando nele senão como tópico, como pretexto para uma história mais antiga, entre mim e os meus botões, vem-me um sabor que se tornou constante em relação a grande parte da manifestação criativa: a incompletude. oxigenamos muito negrume, mas não deixamos de ser senhores de um contra-negrume conversor. é assim que continuamos a respirar.
artes de abismo sabemo-las de cor: bem escavadas, só por alguns. artes solares sabemo-las de cor: bem irradiadas, só por alguns. Arte dúplice sabem-na os maiores.
Etiquetas: lanterna mágica