Caro Philip Gröning:
vi finalmente a sua fita. esta minha dificuldade na escolha da categoria não é sinal de nada para além da dificuldade em si. a fuga ao vaso formal, a descontinuidade e abertura da sua gramática não me aborreceram. já mandei todas as demolições da crítica para a reciclagem ou para o cantinho de jornais para limpar vidros. e por falar em gramática: com que então os monges acentuavam o antifonário! bem sei que cantavam, mas quando me lembro que na faculdade saber a métrica latina ainda era passaporte de exame: sílaba breve, sílaba longa... a sala estava cheia; eu que fazia planos de me assenhorear de pelo menos três cadeiras – pernas [centro], braços [lateral dir/esq], mochila [lateral dir/esq] – quase que levava com o rabo de um senhor que passava na cara. pois é, minha menina, o nimas devia ter aqui um caminho central para a malta passar à vontade... fiquei mesmo no centro, com a mochila ao colo. sabia desde o início que me ia comover. enquanto comprava o bilhete e fumava o cigarro de aquecimento, conseguia ouvir o canto gregoriano da sessão precedente, distante, coado pelas paredes do auditório. logo aí senti os poros a fechar. ando há uns dias a pensar no conceito que une tudo que senti ao ver as filmagens. recorte parece-me o mais cabal: os recortes de luz na escuridão dos claustros, o pavio de uma vela a recortar uma elipse de fogo na escuridão, o branco dos hábitos a recortar corpos no espaço, o próprio tecido a ser recortado pelo monge alfaiate – os passos incisivo da tesoura contra o silêncio – o corte de cabelo a recortar formas prévias na nuca, o recorte de um perfil sentado no fundo vermelho da porta exterior de madeira.
tento muitas vezes tirar fotografias no ângulo que insistiu em exibir: um zoom à linha da orelha e do olho, ou um recorte apenas da nuca e das sua covinhas a começar a desenhar o pescoço. é raro ser bem sucedida nesta categoria. talvez não lhe perdoe o timing de inclusão do Sou Aquele que É entre as cenas finais e não no final. esta tinha mesmo de vir no final, mas não o chateio mais com isso, até a passada sexta, só conhecia a tradução Sou Aquele que Sou, infinitamente mais pobre. fiquei com dúvidas se o enfoque que deu à gratidão e placidez do monge cego perante tudo lhe adveio de um espanto positivo ou negativo. tenho um amigo japonês que explica o mesmo, com base em cíclicas idas e vindas do espírito. em que pensou enquanto o ouvia e filmava? estou ainda demasiado imbuída pelo espírito descontínuo da sua montagem e as imagens estão desorganizadas. também me apetecia falar da cena dos gatos e do deslize na neve: as únicas que fizeram rir a plateia. não... minto. naquela em que o não cumprimento de um preceito é desvalorizado já que o que se faz ali dentro não serve para nada, também houve risos. a neve e o barulho da água da torneira em precipício para o balde, mas não há meio de me organizar e não quero deixar passar mais tempo sobre o que vi. fico por aqui.
obrigada.
Etiquetas: lanterna mágica
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