domingo, fevereiro 14, 2010


não me lembro de ter lido uma finalização narrativa como esta. deixo este recorte para assinalar que é possível transformar um conteúdo naturalmente lúgubre numa conclusão, ainda que triste, luminosa, sem que daí resulta um final feliz balofo. Ich bin wortlos, Herr Hesse.

A quem hei-de ainda dirigir palavras de agradecimento, depois de durante as últimas horas ter recebido o amor e me ter despedido de todos os amigos e de todas as alegrias que se erguiam à beira do meu curto caminho? Durante a manhã pensei oferecer a mim mesmo o canto dos pássaros e os curiosos jogos do sol e das sombras no jardim, recordei aquelas noites que os amigos me concederam, quando estavam comigo e sacrificavam os seus hábitos enérgicos à minha fraqueza. Despedi-me dos meus melhores amigos entre quadros e obras poéticas. Mas ainda existe em mim afeição e gratidão por deuses desconhecidos; tenho ainda palavras de despedida na minha língua - para quem?

Quero oferecer-lhe a minha doença. Ela foi a minha professora. Não foi ela ainda mais afectuosa e constante do que todas as minhas alegrias e todos os meus amigos?

Aquelas horas de madrugada, em que eu jazia imóvel mas desperto, no escuro! As dores que me perturbavam o trabalho, para lutar contra mim mesmo e recordar-me de mim mesmo! Afasto-me de vocês com alegria, tal como uma criança com alegria deixa uma escola demasiado severa, mas penso sem amargura no vosso rigor. Vocês ensianaram-me a respeitar as horas boas, ensinaram-me a paciência e a modéstia e tornaram os meus poucos versos, pela vigília nocturna e ócio forçado durante o dia, mais maduros e reflectidos. Nunca como nas noites brncas da doença me esforcei com tal profundidade e seriedade para dar formas puras e bem proporcionadas às minhas fantasias. Tive de lutar para adquirir a minha arte, combatendo a dor e a exaustão. O trabalho era-me muito difícil, mas ainda assim não terei talvez nunca escrito uma palavra ociosa. Tinha pouco a manter e a oferecer, mas fi-lo com os sacrifícios e o amor de que o meu pobre coração é capaz.
Acima de tudo, no entanto, agradeço-te, minha doença, por me tornares tão fácil a partida. Não te separas de um coração amargurado, a tua escola não me ensinou a praguejar.


Hermann Hesse Contos Sublimes, pp. 28 e 29, Difel, 2006