segunda-feira, outubro 19, 2009

saramago tem razões mas não tem razão
hoje, pela manhã, acordei com o timbre doce de tolentino de mendonça na rádio, falava sobre a Bíblia. entretanto, percebi que também Saramago tinha falado.
não venho exprimir nenhum melindre. em nada me chocam as declarações proferidas, dentro do quadro conceptual que é o seu. sinto-me apenas impelida a pôr em evidência a ausência de rigor das leituras do nobel. antes de mais, esclareço alguns aspectos, para me enquadrar em relação ao escritor. um livro como O Evangelho segundo Jesus Cristo é uma obra que considero, a todos os níveis, incrível. sou uma leitora que acredita em Deus sob uma forma transversal, cruzando o paradigma ocidental com o oriental, e que não concebe o cosmos sem a existência de um demiurgo, contudo nunca hei-de esquecer a leitura dessas páginas: pela incoporação de aspectos da esfera pagã, como a sexualidade, por exemplo, que são normalmente diabolizados (do meu ponto de vista, sem sentido), pelas reflexões que creio serem dúvidas legítimas do mais pio dos crentes e pela reinvenção histórica do epílogo, não por concordar com o modo como a questão é equacionada, mas por achar que, literariamente, é ímpar. creio, porém, e sublinho bem isto, que há uma constante confusão em que o autor labora: misturar acidente institucional, natural imperfeição humana e essência divina. são planos distintos. muito. muitíssimo. talvez entenda que para quem não tenha espontânea e intuitivamente fé, seja normal prevalecer a podridão mundana. isto dito com objectividade, sem acidez alguma. vejo-o claramente em bons amigos ateus que possuo. desta vez, a questão não tem que ver só com isso. no que a esta matéria diz respeito, folgo em que soem trombetas, para usar linguagem a propósito, sobre a desunião que as religiões semeiam entre os povos. nada de equívocos: se saramago acha mais benéfica uma destituição total, eu apenas me preocupo com a falta de ecumenismo, não defendo a abolição de nada, somente a construção de pontes possíveis entre margens histórica e culturalmente diferentes. outro aspecto, e aqui entendo, em certa medida, o detractor: o antigo testamento tem passagens de uma severidade atroz. é um facto. mas biblia, como nos esclarece a etimologia, é um conjunto de livros, não acaba, portanto, no antigo testamento. com ou sem fé, com ou sem sintonia total, será possível não reconhecer nos evangelhos, insertos no novo testamento, mensagens de amor, perdão, esperança, a ponto de todo o livro ser tido como um manual de maus costumes? e o Cântico dos Cânticos? já sei: a Bíblia é produto de decisões editoriais, votos e vetos em concílios, traduções e eventuais manipulações e, mais uma vez, devo dizer que não me choco com a não atribuição de um carácter sagrado e revelado às escrituras, embora até seja das almas que crêem numa base narrativa mínima que dá conta da existência de Jesus como um revolucionário no domínio da espiritualidade e creia que esse (como Buda, por exemplo) estaria num grau de evolução espiritual mais elevado, designado para transmitir ensinamentos ao mundo. não me choco, portanto. só não considero justo ou rigoroso o comentário do deus de blimunda, tendo em conta a vastidão da obra. recordo-me de o ouvir, há meses, na tv, a comentar o episódio do sacrifício de isaac: como é que algum Deus pode pedir a um pai que mate o seu filho? assim se queixava ele. ora, saramago refere-se apenas à primeira parte da narração. quem o estivesse a ouvir e não conhecesse a passagem, ficaria sem acesso ao desfecho, que é essencial: Deus não permite que a criança seja imolada e intervém antes que abraão sacrifique o próprio filho. penso que se constrói o exemplo da provação e do teste divino do herói, sempre hiperbolizado até ao último grau de forma a enaltecer ainda mais a sua devoção, para depois se finalizar em graça. terei eu vícios de simplificação hermenêutica a ponto de não ver mais que isto? era apenas um exemplo. vou tratar de ler o livro e tudo, mas que não houve rigor, lá isso...