terça-feira, dezembro 09, 2008

o reconhecimento
pouco sei acerca de joana d'arc, senão que foi executada pelo fogo e acusada de bruxaria. em parte, foi para que pudesse ter outro tipo de contacto com a personagem que fui ver o filme. cansada, já com a lotação psíquica característica das noites que fecham dias de trabalho em frente ao pc, comecei logo por me sentir embalada pela configuração sala-de-estar-familiar do cine-estúdio do campo alegre: a atmosfera quente, a lista de compras para o continente que o casal que estava na minha fila elencava, em voz alta, as mensagens de voz do telemóvel do senhor atrás de mim a ecoar, o som constante e certo da fita a rebobinar que vinha por fora da cabine de projecção, antes do filme começar. despertei um pouco com a banda sonora e entrei verdadeiramente na sessão. a questão do reconhecimento do líder ou do mensageiro do plano divino perpassa no filme; a missão da donzela tem de ser legitimada pelo poder real e religioso. e isto foi o suficiente para me enredar em reflexões de sempre sobre os homens candeia da história da humanidade e sobre o reconhecimento da excepcionalidade de um ser humano face aos outros, (jesus, buda, confúcio - tenho de ler mais coisas sobre este, pensava também - moisés, maomé...) sobre o seu processo de legitimação ou detracção ou desvirtuação. abstraí-me de Jeanne, embora seguisse com atenção a questão do exame dos doutores da fé, ía-me perdendo - lembro que distracção, etimologicamente, designa o ser-se puxado para vários sentidos - com aspectos gerais até que, quando caí em mim, sem ser puxada por mais nenhum pensamento lateral ao filme, apercebi-me de que tinha adormecido. não sei quantos minutos de filme perdi. nesta percepção desorganizada e disputada por digressões pessoais, que competiram com a fluidez ininterrupta do filme, ficou-me gravada a cena do corte de cabelo da donzela, espelhado pela armadura e varrido (hoje há sempre um cabeleireiro que vem varrer os cabelos que nos cortam do chão dos salões) pelo auto-arremesso das mechas cortadas para uma fogueira, numa pré-figuração do desfecho que há-de ser exibido na próxima parte da filme. o barulho da pena a escrever e a performance manual que o gesto implica ainda ecoam no íntimo, mais do que o grito de guerrilha, as flechadas ou os rasgos de espada durante a batalha contra os ingleses.