quarta-feira, novembro 19, 2008

(re)conhecimento
no domingo, não se conseguia entrar na rua. os bombeiros e o inem barravam-na quase totalmente, à porta de uma das casas do lado par. uma vizinha tinha-se sentido mal, informava-me um outro vizinho, que entrava no carro nesse momento.
paremos neste plano.
cumprimento-o desde sempre; faz parte da galeria de caras familiares por geografia, mas alheias por cumplicidade. nunca como no domingo tínhamos trocado algumas palavras além da clássica saudação, sempre com a rua de permeio: ele, a entrar no lado par, eu, no ímpar. percebi que tem os olhos mais amendoados do que se possa perceber à distância e uma voz bastante enrouquecida, que os como está? também não denunciam. a percepção que tenho do indíviduo alterou-se. drasticamente. e eu que achava, desde sempre, que conhecia perfeitamente aquela cara. nada disso. não está aqui presente qualquer questão de agrado ou desagrado estético (Deus me livre de romances com os inquilinos da frente: esse cenário está reservado a pessoas de papel, nos livros...) o que exponho é o sentimento de não reconhecimento, de alteração de referente. o rosto com quem falei não era o mesmo que o rosto que cumprimento a uns paralelipípedos de distância.
a este propósito, reflectia no não reconhecimento de um qualquer pormenor íntimo, sobretudo quando a proximidade geográfica e a cumplicidade são constantes. há uma expectativa interior, visceral, de coerência, confirmação, identificação, de reconhecimento. terá tanto de legítima como de ingénua a dita. o não reconhecimento, dos outros, e o de nós próprios, ao contrariar uma espécie de princípio cumulativo (interage-se e vive-se há muito tempo, logo, reconhece-se muito bem), é capaz de ser uma das questões mais assustadoras, e, por isso mesmo, mais incríveis do respirar.
entretanto, já com o almoço praticamente todo ingerido, voltei ao mundo da mesa do almoço de família, voltando a ouvi-los, reconhecendo (aqui, claramente) os protestos clássicos da minha avó em relação ao arroz.