sexta-feira, novembro 07, 2008

Amor Omnia

Gertrud
Carl Dreyer (1964)

começo pelo fim, pelo repicar dos sinos, logo frisado no comentário prévio de oliveira à sessão. deu-se comigo uma curiosa coincidência: ontem de manhã, mal sonhando eu que este seria um ingrediente do filme que veria à noite, ao passar rente à igreja de santo ovídio, pensava como é plural o signo acústico do sino. chamada para a missa natal páscoa baptizado casamento procissão funeral. perturba-me sempre ouvi-los, embora goste da sonoridade. creio que a recordação simultânea de uma série de situações completamente diferentes me desorientada. no filme: os sinos assinalam a vitória conceptual da determinação de Gertrud, firme nos seus últimos anos, ou entoam uma balada amarga e fatalista? anunciam um término pessimista ou um término libertador? não me decido...

vemos Gertrud reflectida pelo espelho, ladeado por duas velas, na cena em que estas são acesas por lidman, antigo companheiro, inconformado. Gertrud, porque me deixaste? entre as pequenas velas, senti a figuração de uma veneração. Gertrud, porque me deixaste? mas mais forte em terá sido o impacto do espelho como percepção da incompreensão da personagem por parte dos homens a quem se ligou, que da sua essência, do que a poderia ter completado, apenas possuiram um pálido reflexo. Gertrud, porque me deixaste? entretanto, kannig, o marido com quem se encontra em ruptura, entra em cena e apaga as velas. [uma dúvida terrível, de quem só viu o filme uma vez, se não estiver errada, que caiam os parênteses rectos, porque é o comnetário complementar a esta ideia do simulacro versus essência: anteriormente, em casa do jovem amante pianista, de Gertrud a desnudar-se, vemos unicamente a sombra na parede. uma sombra.]

o que faltava ao beijo de Gertrud para que se pudesse sentir, durante segundos, a suspensão do tempo ou uma micro-taquicardia, sempre indissociáveis da visualização de um enlace verdadeiro? ontem debatia-me com a questão, desapontada, no escuro da sala; isto, antes de conhecer o intuito íntimo do jovem amante de Gertrud. hoje, depois de reflectir e de conhecer o desenvolvimento do filme, consigo ver como o impacto foi justo: não havia, afinal, uma assimetria entre a concepção de amor e sua efectivação entre ambos?um beijo desenha-se a dois. já o olhar de Gertrud, nos momentos de suposta doce ilusão, é elemento que não depende da interacção para se assinalar, como um beijo. de qualquer modo, é possível que assim seja mais justo, o modo desancorado do objecto como o olhar é exibido nalgumas cenas significativas, reforça o grau de idealização amorosa da personagem que a leva às derradeiras consequências no curso da sua vida.

tenho vindo a organizar pequenos pormenores do filme, esquivando-me à análise da opção final de Gertrud de abdicar de tudo e rumar sozinha para o seu eremitério, em nome de uma apertada concepção de amor. enquanto faço a digestão do filme, vou tentando peneirar o que há de orgulhoso e castigador e o que há de procura genuína e idealizada do amor na personagem. sinto que a questão das cartas devolvidas ao velho amigo com quem se reencontra, numa visita à sua velhice solitária, e que o pequeno poema composto na juventude que com ele partilha são importantes. mas tudo isto me pede um novo reencontro com Gertrud, para que possa falar sem névoas na memória. até lá. por hoje, é melhor ficar por aqui ->.