cadeira indiscreta
a do dentista. a legitimidade que o contexto clínico dá a um dentista para se aproximar do rosto do paciente e espreitar-lhe os meandros da boca. não há nada de mal em olhar para o interior da boca de alguém. o gesto não suscita sequer pruridos ou vergonhas no momento das inevitáveis e autorizadas tangências. com o dentista pouco se tricota, ao contrário do que se passa com médicos de diferente maleita, com o padre ou com o advogado. a boca está ocupada. aberta, sempre aberta, sem, porém, poder articular sentidos. se não estiver a aguentar, faça sinal com quê? com o braço, é evidente. erguê-lo, com a maior calma possível, para que se não converta em safanão, por reflexo à dor que pode ser infligida. a boca do dentista, velada por uma cortina asséptica, pouco fala, e quando fala há um filtro acústico na comunicação. a máscara é uma barreira. mas e os olhos? nem no oftalmologista, onde há apenas uma lanterna perscrutadora de permeio, a proximidade é tão grande do rosto do paciente. quem se senta na temível cadeira tem os olhos do especialista a sobrevoar a boca, uma parte do rosto. o design dos dentes, desprovidos de derme e em exposição, talvez anule a existência das portas dos lábios e se mostre agressivo, osseamente biológico, sem mais. noutros contextos, porém, se surpreendemos um interlocutor a olhar para esta área do rosto, é inevitável sentir um constrangimento. aqui não. de baixo, quem toma o assento de enfermo, suporta com outro suportar os olhos do dentista, rigorosos, cirúrgicos a espreitar cá para dentro. podemos fechar os olhos, mas se os abrirmos, nem que seja por uns segundos, sabemos com que contar: há olhos de outro postos em nós. não há qualquer constrangimento, (ou talvez algum, proximidade é sempre proximidade) como haveria se a consulta já tivesse terminado e a uma maior distância o ponto de focagem fosse igualmente a nossa boca. na cadeira, não. mas por alguma razão evitamos olhar para os olhos que estão a olhar para a nossa boca. acima. para dentro.
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