sábado, fevereiro 02, 2008

(...) Junto à casa de chá, quando estou mesmo a passar por ele o cego diz algo. O que diz? por uns instantes fico a lutar com os meus ouvidos. Ouvir por vezes não é fácil. Ele disse: alguém me diz as horas? Havia ali uma sensação clara, trágica: como aquele que tem direito a um último pedido e o faz. O cego atirou aquela pergunta para o ar, não a dirigiu a ninguém. Que alguém a apanhasse, à pergunta - como se fosse um objecto - e tivesse a gentileza de responder. Que gentil sou quando tenho medo, quando o mundo me causa estranheza: aproximei-me do cego, respondi-lhe à pergunta. São duas e meia, disse-lhe (não tenho relógio, tinha visto as horas há instantes no grande relógio da esquina). Ele agradeceu. Levantou-se do banquinho. Duas e meia. Eram horas. Para qualquer coisa. Pegou no banco com a mão esquerda, na direira a bengala. Ele tinha de ir. (...) é fácil indicarmos o caminho a um cego. É isso a cegueira: alguém não sabe onde está, não vê o espaço, as coisas que existem no espaço. Se está cego tem uma limitação geográfica, desorienta-se no espaço, no espaço, meu caro, não no tempo. Aquele cego a perguntar as horas fez-me tropeçar. Como se pela primeira vez entendesse que a cegueira não é apenas o espaço e as suas coisas ficarem invisíveis: também é difícil ver o tempo quando não há olhos (...)
Gonçalo M. Tavares
Visão, 31 de Janeiro de 2008

5 Comments:

Blogger un dress said...

sim...de facto...

belo texto!

03 fevereiro, 2008 15:23  
Blogger carteiro said...

bem...
bela partilha esta.

tem ma boa semana.

04 fevereiro, 2008 01:31  
Blogger André Dias said...

devo dizer que nunca me pareceu fácil indicar o caminho a um cego. pelo contrário, é algo de extremamente embaraçoso, em que uma discordância se manifesta. por exemplo, no modo como se lhes pega no braço, sem saber que preferem ser eles a pegar. não estou por isso nada certo que seja o cego o desadequado nessa situação. um cego desorienta-se no espaço construído pelos videntes. não me parece muito consolador... é um pouco como quando se tenta ensinar música a surdos. ensina-se a nossa música de ouvintes, pedindo-lhes que a repitam. não se lhes permite criar a sua música de surdos, uma que se esperaria seria constituída essencialmente pelas suas percepções, por fortes vibrações provavelmente (nas discotecas, os surdos dançam junto às colunas)...
não teríamos tanto ou mais a esperar dessa música de surdos, desses caminhos de cegos?

04 fevereiro, 2008 16:49  
Anonymous Anónimo said...

gostei bastante da crónica:--)*

04 fevereiro, 2008 23:25  
Blogger lupuscanissignatus said...

"Pior cego é aquele que não quer ver..."

O tempo. O espaço. E as pessoas e os objectos dentro...

07 fevereiro, 2008 18:52  

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